Por vivenciar muita coisa com os artistas, o cotidiano de uma fono mata qualquer fã de inveja
Mesmo sem cantar uma canção sequer, elas também podem ser consideradas ‘estrelas da voz’. Principalmente durante o Carnaval, as fonoaudiólogas tornam-se figuras cruciais para os artistas que, graças ao auxílio delas, conseguem a proeza de cantar por 8 ou até 10 horas seguidas durante a festa.
Regina Grangeiro, 65 anos, Valéria Leal, 46, e Janaína Pimenta, 36, são algumas dessas fonos que atendem grandes nomes da música baiana e nacional. Por conta disso, a rotina delas é tão intensa quanto a dos astros que acompanham.
A carioca Regina, por exemplo, que desde 2001 acompanha Claudia Leitte em todos os shows, gravações e entrevistas, está desde ontem no Cruzeiro da cantora, para garantir que a voz de Claudia se mantenha cristalina.
“Minha vida é assim. Estou sempre correndo de um lado para o outro. Mas, apesar de as turnês serem cansativas, eu gosto! Não penso em largar essa vida”, diz Regina, mantendo a mesma empolgação de quando entrou nessa roda-viva, na década de 90, ao subir num trio pela primeira vez, com Daniela Mercury.
A mineira Janaína Pimenta, que atende estrelas como Luan Santana e Milton Nascimento, também já está em clima de concentração com Ivete Sangalo. Como costuma fazer no período que antecede o Carnaval, ela se muda para a casa da cantora para um trabalho intensivo. “Sempre trago técnicas novas para trabalhar no condicionamento vocal dela, como se faz com um atleta mesmo”, conta.
Maratona
O início do Carnaval é a largada de uma verdadeira maratona vocal, que não é para qualquer um. Basta lembrar que astros internacionais como Mick Jagger ou Bono não fazem shows que ultrapassem 3 horas, algo que um cantor de axé supera com folga e sem ficar com sequelas – caso tenha o acompanhamento de uma ‘personal voice trainer’.
O termo é usado pela paulista Valéria Leal, que atende artistas como Léo Santana, Carlinhos Brown e Margareth Menezes. Pela experiência de 15 anos de trabalho, ela observa como o domingo de Carnaval costuma ser um dia crítico para os artistas baianos. “A cada 24 horas, eles têm um inchaço na laringe e, no terceiro dia de festa, eles começam a se assustar com a perda da voz”.
Para fazer artistas roucos ou até emudecidos voltarem a cantar, durante os rápidos intervalos dos trios, as fonos passam aos cantores diversos exercícios vocais. Ao longo do percurso de Carnaval elas também orientam os artistas a ingerir carboidratos líquidos e isotônicos.
O nível de alimentação e hidratação provoca alterações gritantes na qualidade do canto, o que é facilmente observado quando essa voz passa por um software de espectografia acústica, usado por muitas fonos. “A fonoaudiologia evoluiu muito, e foi-se o tempo em que um cantor aquecia a voz com conhaque e limão. Antigamente, os artistas perdiam muito mais a voz do que hoje, porque não tinham esse acompanhamento”, diz Valéria.
Nos bastidores
Por vivenciar muita coisa com os artistas, o cotidiano de uma fono mata qualquer fã de inveja. Para Regina Grangeiro, lidar com as traquinagens de Claudia Leitte nas turnês é algo corriqueiro. “Na época em que viajávamos de ônibus, ninguém podia abrir a boca quando a Claudia estava dormindo. Em compensação, quando a gente dormia, ela pintava a cara da gente. Uma vez, ela pôs um monte de biscoito amassado no meu sapato! Ela é assim: muito brincalhona!”, conta.
Entre as passagens mais marcantes que já vivenciou com Ivete desde 1999, Janaína faz questão de lembrar do show no Madison Square Garden no ano passado, em Nova York.
“No Madison, a gente ficou tão envolvido na produção do show que, quando percebi, eu estava com um sapato da Ivete no meu pé para amaciá-lo, ao mesmo tempo em que o cabeleireiro já dava palpite na roupa… Enfim, todo mundo se uniu para fazer as coisas acontecerem. No fim foi aquele chororô de alegria”, diz Janaína, que fala sobre isso no DVD gravado no Madison.
Já Valéria Leal pode se gabar de ter participado intensamente da produção dos discos Diminuto e Adobró de Carlinhos Brown. Inclusive, suas orientações serviram de inspiração para o cantor. Antes da gravação da música Romântico Ambiente, Valéria fez um aquecimento rápido de voz e pediu que as luzes do estúdio fossem apagadas.
“Então, disse ao Carlinhos para ele imaginar que estivesse cantando no ouvido de uma mulher que estivesse com um vestido comprido… O resultado ficou bom e, pra minha surpresa, no show que ele fez no TCA, ele projetou na hora dessa música a imagem de um casal dançando, com a mulher usando um vestidão”.
A intensa ligação com os artistas faz as fonaudiólogas desempenharem, por vezes, até o papel de psicólogas. “Na estrada, compartilhamos muita coisa com os cantores. No caso da Ivete, minha relação é de amizade mesmo. Passamos aperto juntas e falamos sobre tudo”, diz Janaína, que tem a artista como madrinha de casamento.
“No fim, somos nós que dividimos a responsabilidade da voz com o cantor”, aponta Valéria. “Afinal, ele pode estar com a melhor roupa, a melhor banda, aparelhagem, mas se não estiver com a voz boa ele não tem nada”, completa.
Reconhecimento
E se hoje as fonoaudiólogas podem ganhar mais de R$ 10 mil durante o Carnaval, e contam com o reconhecimento dos empresários e artistas, a veterana Regina Grangeiro lembra como isso nem sempre foi assim. “Antes, os cantores escondiam que tinham o nosso acompanhamento, por medo de que falassem que eles estavam com problemas sérios. Isso só mudou no fim dos anos 90, quando fizemos os artistas perceberem a importância de cuidar da voz”.
Valéria é outra que bate no peito e diz com orgulho como ela e as colegas criaram um método único de trabalhar com os cantores na Bahia. “Não tem Broadway, Ópera ou qualquer coisa que se compare ao que se enfrenta no Carnaval. E para essa realidade criamos um método de trabalho único, brasileiro!”, afirma, convicta.